Memórias das nossas putas tristes
Não vamos voltar a falar dos nossos episódios de autocarro, pelo menos por agora, mas às vinte e duas horas de viagem demos com um quarto do autocarro a apontar para os pés da Bárbara, a abanar a cabeça e a oferecer conselhos, mezinhas e xaropadas para prevenir e tratar o inchaço anómalo dos pés da pobre. E foi a arrastar os pés que chegámos, finalmente, à 135 com a 10A. A Colômbia tem esta coisa prática de fazer esquadrias em todas as cidades grandes – Bogotá está organizada por calles, que vão de Este a Oeste e atravessam as carreras, paralelas às montanhas, ou seja, que vão de Sul a Norte. Pode parecer complicado assim escrito, mas a verdade é que estes números sempre a crescer ou a diminuir nos deixam saber exactamente onde é que é onde, e desde que chegámos nunca nos perdemos, também quase nunca andámos sozinhas, mas foi a primeira coisa que nos explicaram.
Já na 135 com a 10A tínhamos a Rita com a cabeça de fora da janela, cheia de preocupações e cuidados – quatro horas de espera e duas arepas de Boyaca quentinhas e boas para as duas trastes repassadas. Mas ainda não chegámos a casa, de mochilas às costas até à 140, de mochilas às costas até à 142 com a 11. Casa. A Rita tem as chaves da casa do João. E depois de um café, de um banho e mais arepas, fomos para a casa do Rodrigo e da Andrea. A Andrea é a mulher do Rodrigo, o Rodrigo é o melhor amigo do João e a Rita é a irmã do Rodrigo, mas onde é que está o João? Não aguentamos as saudades, até antecipámos a chegada só para estar mais tempo com ele, e o João ainda não apareceu. Seguimos para a T, a zona de bem de Bogotá, e quando estamos quase à porta do Little India, vemos do outro lado da estrada um rapaz alto, bem composto e algo emproado, que nos parece familiar. Saltámos-lhe para cima, quase o beliscávamos a ver se era mesmo ele, se era mesmo verdade – o João é um amigo muito querido, e foi-se embora pouco depois de nós nos termos ido embora, encontra-lo ali, no meio da rua de uma cidade estranha, foi estranho e muito feliz. E nas horas seguintes ignorámos a mesa corrida de colombianos que faziam a nossa mesa e não largámos o João.
Largámo-lo na manhã seguinte, quando foi trabalhar, mas se não está o João está a Rita. A Rita que nos aparece todas as manhãs para o café, a Rita que nos faz o almoço – qué rico, Rita! – a Rita que nos mostra os cantos do bairro, a Rita que se senta no chão da sala, ao nosso lado, a fazer um três em linha, a Rita que faz bolos de chocolate e de cenoura que são uma perdição, a Rita que tem sempre coisas novas para dizer. Mas hoje vamos almoçar com o João, junta-se o Rodrigo para o corrientazo – o prato do dia colombiano que quase sempre é carne de rés – um bife de vitela, frijoles – feijões portanto, plátano – uma espécie de banana a murro frita, huevos, arroz, batata frita e com sorte um guacamole. E para o jantar junta-se o Zé, um amigo da Rita, mais um português para o grupo de Bogotá. E o Zé, depois de muitos tragos de néctar (a água ardente de cá) e tequila pelos chucitos de Cedritos, acabou a noite a convencer-nos de que a verdadeira “definição de festa” estava no Andrés de Chía. Então parece que tínhamos planos para a noite seguinte.
às sete já estamos sete, não dá para um táxi, temos de pedir uma carrinha, às sete e meia o Zé já vem com a Maria, com o António, o Gonçalo e o Ricardo. Afinal o Enrico também vem, e traz um amigo venezuelano. Contas feitas somos treze e com treze já se freta uma buseta (aqui na Colômbia os autocarros têm esta nome muito feio) e se faz uma festa grande dentro e fora da verdadeira “definição de festa”. O Andrés de Chia é uma euforia de cores, berliques, berloques e perlim pim pins, é um lugar cheio de gente encendida, numa detonação de festa. Em todos os cantos um pormenor, um néon, uns sapatos vermelhos, mais luzinhas, mais corações escarlate, sucatas e ferro velho. é um lugar tão rico em detalhes e tão grande que nos perdemos logo na primeira ala e há umas tantas mais, até há uma rua que fecham de noite e é festa, festa, festa.
Domingos de ressaca com açordas para o jantar, o João faz a melhor açorda de camarão do mundo e depois de meses a aguar por esse momento, foi com a lareira acesa, depois de uma tarde de passeios lentos por mercados de artesanias e doces, que finalmente estamos de pratinho na mão a lamber os beiços.