Cidade do México I México
A cidade com vinte milhões de palavras

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Chegámos à Cidade do México com olheiras fundas e um certo mau humor. é verdade que não queríamos ter chegado já, e o céu carregado não ajuda. Em meia hora estaremos a caminho da Colónia de Anzures, para a Rua Shakespeare, que está entre a Darwin e a Victor Hugo, de frente para a Allan Poe. Dormiremos numa cama larga, no décimo andar do amigo Tiago.

25 de Abril. A nossa revolução é sair à rua para entrar na história do México – Museu de Antropologia – Maias, Mexicas, Toltecas, Tzetzales, Tzotziles, Yucatecos, civilizações do Norte, culturas do Ocidente, de Oaxaca. Vemos tanta cara, tanto boneco, tanta máscara, tanto deus a olhar para nós que ficamos zonzas. Quisemos começar o México pela origem, mas ao final de três horas as tantas imagens misturaram-se todas na nossa cabeça até só restar um “quem é quem?”, “como, como?”, “o quê, o quê?”. Tudo culpa da altitude, claro.

Há gente no metro de Chapultepec e “esta noche ya es Navidad”, “cinco gatitos todos con pijama”, “dos pesos, dos pesos, un regalo para tu chico, “porta-celular, diez pesos” – não há como metro da cidade do México, esqueçam-se todas as viagens de dez, quinze minutos de aborrecimento e entre-se numa feira ambulante, com música às costas e tudo o que são objectos “chiquitos” que se apregoam linhas fora. A nossa paragem é Zócalo, saímos e temos a visão – centro da história da Cidade do México – uma história que não se faz só de catedrais e palácios erguidos pelos espanhóis, mas que escava pela história dos indígenas que espantam espíritos e vendem carteiras e colares de âmbar, bolotas, lapislázulite, obsidiana. E toda a história ganha vida com os sombreiros, as camisetas, os anéis e as pulseiras, com os leggings e os elásticos, as pochetes e os plásticos de brincar. Tudo se espalha pela chão da Plaza de la Constituizon. Nós, sentámo-nos no fundo das escadas a ver uma outra história mais profunda e matizada pelas cores do Riviera, pelas expressões fundas, pelas mensagens subliminares, pelos vários tempos e facções do Palácio Nacional.

Saímos por ruas largas a envolver grandes e maciços edifícios coloniais, prédios soberbos, arquitectura europeia a descascar. E as ruas largas estão povoadas de gente falante, de berros e vozes roucas de tanto vender o seu peixe e a sua candonga. Cruzamos a Venezuela e a Argentina, a Colômbia e o Equador para chegar a um outro mural do Riviera, daqueles que lembram que “se quieres comer, trabaja”, de martelo e foice na mão. A nós o Riviera comove-nos, na traição sincera que pinta em grande.

Manifestação zapa na 5 de Mayo. Polícia na rua, metralhadores e um nervosinho no ar. Estacamos. Depois cruzamos a rua e subimos para o Salão Corona, fazemo-nos aos picles na mesa e aos tacos “chiquitos” que pedimos bem junto ao varandim, e se vem “la cerveza más fina, entonces, se platica”. O nosso guia cor de laranja não nos prepara para a noite, improvisamos. é sexta-feira e o mapa diz-nos que “además de la vida nocturna” há boutiques, livrarias, lojas de design, mas a verdade é que a zona rosa é só um eufemismo para uma zona bem avermelhada, de sex-shops e bares foleiros. Mas acabamos com o Tiago e os amigos mexicanos num bar/discoteca de música ao vivo e pernas à mostra algures em Condesa.

Manhã radiosa de Sábado. Corremos para a Frida, mas já vamos tarde. Temos filas de turistas à nossa frente que não nos deixam chorar. A Casa Azul perdeu a lide, arrumou a cozinha e fez a cama. Casa grande, casa azul, janelas cor de Oaxaca, jardins de esqueletos pendurados, salas de naturezas mortas – Frida, que já cá não estás, nem os sobrinhos, nem o Diego, nem um Trotsky, nem uns outros amigos. Frida que já não esmagas o aguacate, nem acendes o lume na cozinha que tem o teu nome na parede. Frida que já não dormes no “cariño” da tua almofada, nem acordas o “corazon adormecido”, nem apertas o peito no teu espartilho de estrela pregada.

Sul da cidade do México, Coyocan, jardins largos, pracetas, crianças à solta, gente a encher esplanadas inteiras, vendedores de “papas fritas”, pudins flan, pastilha elástica, bolinhos espalmados, bolinhos papudos, cones creme, chocolates, massa-pão. Cafés dos anos 50, muito fortes, lojas de bonsais, livrarias, feiras do livro e do artesanato. Casinhas toscas, cafezinhos “hermosos” e todos os mexicanos roliços que saíram à rua neste sábado à tarde para “platicar”.

“Orizaba e Alvaro Obregon”, resposta do Tiago para as ruas certas onde ir “tomar” uma cerveja no final da tarde. Estamos em Roma, uma Roma com queijo de Chiapas, com Coronitas a escrever páginas a gosto. Roma é uma das colónias mais “cool” de DF. Grupos de gente bonita, aparentemente interessante, sentada em cadeiras de ferro fundido e de palhinha, a falar alto, há saxofones a pedir moedas, há contrabaixos a dar mais ritmo às conversas e putos de cestas de guloseimas a impingir o doce. Podíamos passar três meses a “tomar” e a petiscar em sítios diferentes só na mesma rua. Mas é na Clandestina que passamos a noite, no torpor do nosso primeiro mezcal.

Almoço de sol em Condesa num mercado amarelo de esquina. Há quiches e paninis nas ruas de Condesa, há livrarias em teatros antigos, há avenidas de casas coloridas e “migajas de amor”. é Domingo à tarde e voltamos a deambulações de cabeça no ar e queixo caído às livrarias de cada esquina, ao café de vasos de flores à porta, e jarros de latão na mesa. Mais uma rua, outra e outra, e desembocamos num outro mercado, dos fritos e das frutas para lá de maduras, uma outra e outra, damos com uma avenida de carros empenados, construção em altura e portas de latão. é aqui que apanhamos o metro para casa.

Segunda-feira, os museus estão fechados, mas é o primeiro dia de uma semana de aulas. Vamos à UNAM, a maior Universidade da América Latina, Património da Humanidade, um campus de crítica e contestação. é a última paragem da linha verde, dali ainda apanhamos um autocarro “rota 1” para chegar à Biblioteca Central. São vinte minutos de rotundas, escolas de engenharia, veterinária, antropologia, filosofia, arquitectura, mestrados e pós-graduações – um golpe de vanguarda que começa pelas origens, um edifício de linhas direitas povoado de figuras e símbolos pré-hispânicos. Não fossem estas imagens, estaríamos algures em Berlin, em jardins cercados de Bauhaus e assinaturas Corbusier. Mas estamos no México, no “El Pedregal”, no coração da UNAM. Naquele que a Alexandra descreve como “uma utopia do México, o país mestiço que ia fazer a síntese do Velho e do Novo Mundo, afirmando-se pela ciência, pelas artes, pelo desporto, pelo equilíbrio entre história e futuro, natureza e construção humana”. Deixamo-nos ficar entre merendas debaixo de árvores, silêncios pela biblioteca e passeios pelos pátios verdes, como se também fossemos dali. Mas é preciso fazer-se o caminho todo para trás, para se voltar tudo para trás e chegar ao ano de 68 em Tlatelolco – o memorial é comovente, “quien, quienes, nadie” – no dia seguinte ao massacre dos estudantes, a principal notícia dos jornais foi o estado do tempo, “ni un minuto de silencio en el banquete”. Lemos os nomes e as idades, os corpos tão verdes caídos naquela praça onde o eco das vozes foi dissonante. Saímos fechadas nos nossos silêncios.

Agora dormimos umas ruas acima, Polanco. Bebemos um café com a Sara num sítio de ardósias na parede e pães para todas as gulas, mas só bebemos café. Mais um dia para o Diego e para a Frida, mas hoje em San Angel. São dois cubos ligados por uma ponte – um é azul, o outro vermelho venoso. O primeiro é ele, o outro é dela. Mas é ele que mais se sente por lá, no atelier de esqueletos e cabeçudos, de janelas grandes, figuras indígenas, pinceis e cavaletes. Ainda lá estão os sapatos deixados, o pijama em cima da cama, que esta manhã já se saiu para passear pela rua de lojas caras, pelo quarteirão de cafés charmosos até ao metro Miguel Quevedo. O jantar será português e a conversa é boa pelo serão.