Singapura I Singapura
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Acabaram-se os táxis a custar meia-dúzia de tostões, acabaram-se os regateios, acabaram-se as refeições por menos de dois euros, acabaram-se as pastilhas elásticas, acabou-se a javardice, a bandalheira, o estardalhal. Fizemos filinha pela esquerda e entrámos ordenadamente, sem fazer muita mossa, na linha verde do MRT. Tentámos passar despercebidas, mas as nossas mochilas não deixam. Somos duas, mas parecemos quatro, nós e a carapaça que trazemos às costas e o escudo protector que levamos à frente, mais o saquinho de mão das coisas que dão mesmo jeito ter à mão. é uma tristeza. Damos uns pulinhos a ver se nos ajeitamos e encontramos melhor posição, temos o pescoço esticado para a frente e as pernas flectidas para aguentar com o peso, com as curvas e com as travagens. Agora imagine-se o drama que é cair uma moeda ao chão. Quem carrega aquele peso todo e vai ao chão, nunca mais se levanta sozinha. Ora se a que fica de pé tem um ataque de riso que contagia a outra, nunca mais se sai dali. Foram cinco minutos de oupas falhados, ameaças de chichi nas cuecas e uns tantos olhares de desaprovação, sem nunca por a hipótese de tirar as mochilas de cima. Mas lá se conteve a respiração, se sufocou o riso e deu-se a mãozinha.
Buona Vista – é aqui que saímos. Há uma longa caminhada até sair da estação, uma longa avenida pela frente e uma acentuada subida até chegarmos à casa da Joana, do Pedro e da pequena Madalena. Nem nos atrevemos a dar dois beijinhos tão vermelhas e destiladas que estávamos. Uma vergonha.

Chove que deus a dá. E o que é que fazemos em Singapura se a previsão é chuva para toda a tarde? Vamos ao shopping. Food court, dim sum, chopstick, chove. Top shop, mark spencer, h&m, stradivarius, chove. Starbucks, capuccino, W.C., chove menos. Abrimos o guarda-chuva dos gatinhos e fazemo-nos ao passeio.

Vamos chapinhando do Raffles Mall até à Esplanade Theatre. Abrigamo-nos da chuva no durian gigante, mas aqui já não é preciso matar tempo. Há cartazes a anunciar os Grizzly Bear e há dança contemporânea chinesa para breve. No hall ouvem-se duetos de amor, lá fora, no anfiteatro, covers dos National, dos Radiohead e do Bon Iver. Escolhemos o Indie dos anos zero, com o concentrado de arranha céus do City Hall, o estrambólico barco atracado às torres de 57 andares e a roda gigante, o lago, a ponte, o velho hotel chiquíssimo, o entardecer.

Ao cair da noite atravessamos o império vertical de vidro e alumínio, dos espelhos, dos LEDs, dos reflexos, dos ângulos e das ilusões ópticas. Atravessamos quarteirões assépticos, esterilizados, mudos, obedientes, corredores largos de alcatrão, passadeiras e semáforos. A esta hora carros há poucos, pessoas há menos, estamos a pouco mais de uma semana do ano novo chinês e parece que tudo desceu à cidade baixa de China Town. Abandonamos os morros ultramodernos e voltamos a ver céu sobre as casas de primeiro andar do bairro chinês. Seguimos a serpente inflamada de amarelos, mas somos nós que serpenteamos entre encontrões, apertos, “excuse mes” e “I’m sorrys”. Caminhamos aos oitos entre a massa de gente que apinha as ruas estreitas do bun, das espetadinhas com tudo, do porco doce, da fruta caramelizada, da galinha com amêndoas, das caixas de dumplings sobre as mesas corridas, das milhares de bocas de água na boca desta rua agridoce. O vermelho e o dourado enfeitam todas as paralelas e perpendiculares, todas as portas, janelas e varandins. Há gatos da sorte, dragões, mais serpentes e candeeiros de papel escarlate a auspiciar um ano novo próspero. é China Town na sua variante mais plástica. Está tudo tão arranjadinho, tão limpinho e bem pintado que a sensação é a de estarmos nas casinhas do Via Catarina, mas em versão chinesa. é um amoroso museu a céu aberto, uma caricatura civilizacional no seu exagero de perfeição e controlo.

Também nunca uma Little India nos cheirou tão bem, foi tão asseada e aprumadinha. Nunca as fachadas tiveram uma cor tão sólida, nem o cheiro a masala, a caril e a incenso foi tão apurado – não há cá misturas nem de lixo, nem de água suja, nem de banhos por tomar. Fomos lá para o roti e para o biriani, mas até o sabor era mais artificial. Têm lavado tanto a cozinha a ver se sobem de B para A, que lá se vai o sabor por água abaixo. Em Singapura há uma espécie de ASAE que arruma por categorias os stalls e restaurantes e os obriga a atingir certos níveis de qualidade. Todos têm a plaquinha para que fique bem claro em que tipo de lugar é que se está a comer, ora, para nós já serve qualquer um, mas se vamos a um indiano estamos à espera de uma nota D, não de um insípido e sensaborão B.

Mas Singapura é nota A, é 20 valores, é certo a tudo. é primeira fila, é método, é regra, é reguada, é castigo. Singapura são cadernos passados a limpo, sem rasuras nem borrões, aliás, já nem são cadernos, são códigos, algoritmos, automatismos, processamentos. é perfeita, é aborrecida, é exemplar, é previsível, é implacável, é fria. E também o dizemos em fúria: “Se isto é o futuro, funciona”.