Belo Horizonte I Brasil
Se faltar a paz, Minas Gerais

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Minas Gerais. As Minas de Geraldo Viramundos, as do Grande Sertão: Veredas, as da broa de fubá, do queijo canastra, do feijão tropeiro, da coxinha de frango e das cidades históricas. Da Chica da Silva, do Aleijadinho, do Drummod de Andrade, do pé de moleque, do doce de leite, das balas delícia.

Belo Horizonte tornou-se a casa, a dos amigos, a base para andarmos de cidadezinha em aldeola. Nos nossos planos BH nem aparecia no mapa, o mapa de Ouro Preto, Tiradentes, Mariana, Diamantina. Mas o nosso mapa encheu-se de amigos e planos com amigos, e lá se foi Tiradentes e Mariana para assinalar passeios, noites de forró e Domingos em famílias.

Ficámos com a Camila e com a Fernanda, juntaram-se a Thais e o Henrique, apareceu outra vez a Fernanda, que veio de Parati, fomos passear com a Marina e conhecemos outra Thais, almoçámos com o Rafa, com a família e com os amigos do Rafa, mas juntou-se outra família, a da Fernanda. Que trapalhada.

Foi depois de uma noite mal dormida e debaixo de chuva grossa que às sete da manhã batemos à porta da Camila e da Fernanda. Mas só à noite é que nos sentámos todas na sala, na mesma onde sempre se ligaram as colunas ao Gonzaga, ao Alseu, ao Milton Nascimento e a tantos outros artistas do forró que a Camila e a Fernanda conhecem de trás para a frente. Dois passinhos para lá, dois para cá, abre-se a gaveta ao triângulo e ao pandeiro, tira-se a capa ao violão ou saca-se o clarinete da maleta, e a Fernanda canta sempre e canta muito bem. E porque estamos sempre todas na broca (ou com a larica), lá se abrem os queijos, as tostas e os biscoitos, manda-se vir a janta, faz-se a janta, mas há sempre um momento em que se comem as balas de milho que a Thais deixou por lá. A Thais é a irmã da Camila, que nos apareceu nessa primeira noite com o Henrique, acabados de chegar da viagem aos Estados Unidos, cheios de histórias de pedir por mais, mas as balas, quais Reeses a derreter-se em manteiga de amendoim e chocolate, as balas eram de milho (“de milho???” – diz a Fernanda). Como não ficar a amá-los?!

Mas já que o assunto é a broca, estava mais do que na hora de nos fazermos aos quilos da comida mineira. E aí esquecem-se todas as preocupações com o equilíbrio alimentar. Enche-se o prato, pois claro, arroz, feijão, couve, farofa, carnes acabadas de assar e pesam-se as gramas no prato e as gramas a mais no bucho e ai ai ai que nem se quer saber. Nunca como em Minas a comida soube tanto a casa e ao mesmo tempo tanto a Minas. Mas em Belo Horizonte também há barrigadas culturais, a Marina, muito sorridente e toda despachada, já se pôs a andar connosco BH acima, BH abaixo para os teatros, os cinemas e as exposições onde tanto queria ir e nos queria levar. Foi preciso chegar ao Brasil para ver o Escher, chegar a BH para ir ao cinema da malta alternativa e dos filmes de culto, estar com a Marina e com a Thais, a outra Thais, para falarmos de design e produções gráficas. E continuamos a tirar a barriga de misérias culturais, uns dias depois, em Inhotim. Mas de Inhotim temos mesmo de falar. Um jardim numa floresta tropical onde as galerias se enroscam nos troncos, nos lagos, no chão verde, nos altos e baixos da paisagem. E depois é entrar em piscinas Jimmy Hendrix, em salas vermelhas Meireles, em concertos eruditos onde cada vozeirão está feito coluna de som, em praças tipo Mondrian, a caminhar quilómetros para ver a Kusama outra vez, a revisitar as paredes da Adriana Varejão, admiração em cada canto, a cada banco, o pormenor da recepção, o detalhe do restaurante, e as mais de duas horas para voltar a casa com os pés a pedirem molho.

E foram passando mais dias que a conta até se fazer um Domingo quente. A Fernanda, ainda estava em Parati já nos tinha conectado ao Rafa, outro rapaz de viagens e mundo, que depois de tanto país em comum, só viemos encontrar na casa dos pais, em BH. Estávamos convidadas para a feijoada domingueira, e depois do passeio pela feira, lá fomos nós lampeiras direitinhas ao endereço da mensagem, conhecer enfim o Rafa. Mas quem nos abre a porta é a mãe, e da porta para dentro um arraial de gente de pé e sentada, no chão, nos sofás, na sala de jantar, nos corredores, pela varanda, à volta do fogão, pela marquise. E não é que o Rafa ainda não está. Quem somos nós, afinal? O que estamos ali a fazer, quem nos trouxe? – “Ah são amigas do Rafa?”. –“Mais ou menos...” – “ainda não o conhecemos” – “Ahhh...”. Dizer isto a uma mãe, a um primo, a toda a gente que cumprimentámos foi, no mínimo, embaraçoso. Mas em dez minutos estávamos já à volta da mesa, de cerveja no copo e digamos que, um ano a viajar, desbloqueia qualquer conversa. é claro que o Rafa aparece e umas duas horas depois entra a nossa Fernanda em cena, com o pai no violão e a mãe sorridente a preparar-se para a cantoria que aí vinha. Como sempre entra o pandeiro, e não se “deixa o samba morrer”, há “tiro ao álvaro”, e “besta é tu”, “preta pretinha”, “desde que o samba é samba”, “sonho meu” e as palmas caem no sítio certo, as letras sabem-se de principio ao fim e já lá para o final se começa a descambar, canta-se o Roberto Carlos, e como há portuguesas em casa “ai bate o pé, bate o pé, bate o pé”. E foi-se bater o pé, sim senhor, até Santa Teresa.

Mas não podíamos sair de BH sem a verdadeira noite de forró e forrobodó. E lá voltamos ao salão de baile, daqueles que lembram as noites de salsa em Cali e em Medellin. Há banda no palco e fazem-se olhinhos na pista, os pares enroscam-se e desenroscam-se, o joelho atravessa-se, a anca pára, a anca mexe-mexe, um dois, um dois... “na bruma leve das paixões que vêm de dentro....”*.

*Alceu Valença