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Empanadas, vinho, uma festa de salsa perdida, um temporal, uma noite de cumbia num estaleiro cultural insuspeito. Sexta-feira termina numa manhã de sábado chuvosa com o Mano a bater-nos à porta. O grande amigo do Ezequiel, que também já viveu nesta casa, veio passar o fim-de-semana à capital, tão só porque quer comer pizza. é a isso que vamos. Parece-nos que Buenos Aires, de tanto se querer parecer com a Europa, acabou por se tornar num superlativo da ideia europeia, os edifícios são mais altos, as avenidas mais largas, mais compridas, há mais teatros de seguida, mais livrarias de esquina e até as pizzas têm mais queijo, aliás, têm muito mais queijo, é uma obscenidade de queijo, uma pouca vergonha de muzzarella, com u. Já tínhamos experimentado as imbatíveis “muzzas” do Quarteto, hoje continuamos nas pizzarias da Corrientes, as melhores de cá, mas adicionámos-lhe uma fatia de faina – uma massa de grão de bico em forma de pizza que ajuda a digerir o meio quilo de queijo que metemos ao estômago.
E se no domingo passado nos arrepiámos com a sala cheia do MALBA para ver José e Pilar, hoje deixamo-nos comover pelo final de tarde de fado, pela voz argentina de sotaque português quase perfeito, pelos silêncios que se fizeram à melodia lusa, à alma tremida, à saudade que não passa. Foi bonito ver encher a casa de argentinos saudosos, sentir o nervosinho dos fadistas porque esta noite há seis portugueses na plateia,
cantar com eles, aplaudir muito, entoar “ah fadista”, “bravo” e deixar a noite aquecer, rojada a copos de vinho tinto e cigarros ao fundo da escada.
Uma semana que continuou bem portuguesa, com pão e muito vinho sobre a mesa. Mudámos de casa, agora já não vivemos na Lavalle, passámo-nos para um quarto andar da Plaza de Italia, onde estão os nossos quatro portugueses. Chegámos para ficar cinco dias, mas ficámos mais de dez. Assim, a arrastarmo-nos pela casa de pantufas e gata no colo, em pequenos-almoços demorados com o jornal aberto e páginas de word a ganhar forma de textos em atraso, a ir à padaria e à frutaria mesmo ao virar da esquina, a sair sempre tarde porque ali a casa sabe mais a casa. Mas bom bom era vê-los a chegar, sentir a casa a ficar mais quente, os casacos pendurados nas cadeiras, os sacos no chão, os sofás ocupados e os jantares que acabavam sempre em conversa que “sabem ao café no quiosque e à jola do Bairro”, não é Catarina?
Buenos Aires foi esta coisa boa de conhecer gente a toda a hora e reencontrar amigos que tinham ficado numa outra parte desta viagem. Foi assim com o Ezequiel, com o Pablo, com o Don e até, de alguma forma, com a Carla. Hoje o Pablo não está numa ilha deserta, não tem o lenço enrolado à samaritano, muito menos a camisa aberta à matador, mas está à nossa espera no Hipódromo de Buenos Aires com um gorro na cabeça, umas calças cor de tijolo e um certo ar mafioso. Abraçamo-nos todos, sorrimos até meio envergonhados e sentamo-nos na bancada quase vazia a olhar para os cavalos e a ouvir as explicações do jogo, ao mesmo tempo que nos vai falando da criação de cavalos, dos vitelos, e depois da viagem pelo Laos e todos vamos recuperando imagens da ilha deserta onde fomos felizes. E o dia acaba com um gelado de gelo de limão, os dedos lambuzados e um Rosedal com mais espinhos do que rosas. O até já é uma semana mais tarde, agora também com o Don que deixou crescer o cabelo e está ainda mais doce, o espertalhão. Ficámos uma tarde inteira noutro parque a beber cerveja e a comer bolachas de chocolate com a Carla sempre no telefone.
à Boca vamos sozinhas, que aquilo é coisa só para turistas, chega a ser atordoante tanta cor e tanto boneco nos varandins, tanto assédio ao almoço da esplanada, tanto tangueiro a pedir gorjeta, tanta perna alçada, tanto chapéu, tanta flor na cabeça. Esperávamos as casas garridas sim, os jogos de cor, da tinta restante dos barcos a cobrir quadrado aqui, quadrado ali. Esperávamos as prostitutas, românticas, esperávamos os homens do porto, de outra época, esperávamos ecos de acordeão no ar e cheiro a vinho azedo. Mas a Boca mantém o cenário, preserva a ideia, recupera cinzas e dá-lhe um certo lustro, em hora e meia fugimos dali.
Não há como perdermo-nos pelas ruas, caminhar horas a fio, passar por lugares importantes e só depois dar por ela, assim, levemente. Mas também gostamos muito que nos levem a passear, que nos mostrem sítios queridos ou especiais. A Mariana levou-nos à livraria Ateneo, um teatro com palco, café e tribunas feitas estantes de livros e discos de ópera. O Chico passeou-nos pelo cemitério, passou-nos mate pelo parque, mostrou-nos a grande flor metálica, que já não gira, e levou-nos ao bairro onde gostava de viver.
Depois de quase três semanas por Buenos Aires sabemos que temos de ir. O Andrés e a Diana já nos esperam há uma semana no Uruguai. Vamos cruzar o Rio de la Plata, atracar em Colonia del Sacramento e seguir viagem.