Buenos Aires I Argentina
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Foi muito tempo a imaginar avenidas, prédios altos, homens bonitos, sapatos de tango, carnes vermelhas e reboliço. Tanto nervosinho, expectativa e excitação que, na hora de apanhar o autocarro para Buenos Aires, o perdemos. Estávamos mais do que na hora, só que nos esquecemos que mudava a hora, e tranquilamente vimo-lo a ir, enquanto esperávamos sentadinhas no terminal de Mendoza. é claro que nos fomos aos arames quando demos conta de que as nossas sete e meia chilenas não batiam certo com as oito e meia da Argentina, e por muito que corrêssemos e desbaratássemos por aí, íamos ter de pagar pela troca. Trocámos para as nove, uma numa ponta outra noutra, que já nem lugares juntos havia. Lá jantámos cada uma para seu lado os tabuleirinhos quentes que a Flecha Bus serve, e depois da hora e meia de película, é só deixar a cabeça cair para o lado, puxar da mantinha e esperar que o dia nos desperte, em Buenos Aires.

Normalmente sabemos que gostamos de uma cidade logo nas primeiras pisadas, nos primeiros passos pela rua, nas primeiras palavras trocadas com a gente. é como quando se conhece alguém pela primeira vez, por muito que se adentre uma amizade, no fundo, a primeira impressão está sempre lá. é claro que quem vê caras não vê corações, mas os bons ares da cidade sentiram-se mal chegámos ao Retiro, onde todas as pulgas e bichos carpinteiros começaram a espernear, a cabriolar e a dar umas boas ferroadas de contentes.

O Ezequiel, o mesmo Ezequiel do Equador e de Carlos Paz, espera-nos. Mesmo a tempo do café e da descida rápida à panaderia para as primeiras facturas do pequeno-almoço. Passa-se uma hora nisto, a devorar medias lunas e todas as miniaturas folhadas e recheadas com dulce de leche e membrillo, enquanto o Ezequiel fala, e rimos, fala, e rimos, fala e fala, e fala dos planos para o dia.

Supra-europa, ultra-europa, hiper-europa, alter-europa, Palermo. Não sabemos se são as saudades do velho continente, se a euforia da chegada, se serão as pessoas bonitas que se passeiam, mas há muito que não nos víamos tão peixe dentro de água. Experimentámos todas as fitas de flores do mercado, pusemos todo o santo anel no dedo, lemos todos os fileteados pintados em plaquinhas, entrámos em quase todos os cafés só para ver lá dentro, chegámos a provar t-shirts Maria Cher, pelo mero prazer que é entrar num provador outra vez. Estávamos passadas, feitas pacóvias, palermas de todo. Como é que tudo o que sempre nos foi habitual e tanto nos faltou este ano, estava todo ali, concentrado na mesma praceta, a esvair-se pelas ruas mais chegadas. Teve de ser o Ezequiel, a agarrar-nos pela mãozinha e a sentar-nos para um chá, a ver se nos acalmávamos. E ficámos por ali um bom pedaço, de chávena na mão, a sorrir para coisa nenhuma, a ver a gente passar, a rir disparatadas, até que se fez fim de tarde.

Ah Buenos Aires ao lusco-fusco, no espectáculo das luzes baixas a acender, Buenos Aires noite cerrada, com gente a rebentar pelas costuras dos restaurantes e dos bares, em programas de Sábado-à-noite, pela hora do jantar, aí a bater nas onze. O Ezequiel apresenta-nos o Pires, um descendente de portugueses que de português só tem o apelido e o gosto pelo fado, mas de portenho bombeia-lhe o sangue no coração. é ele que nos leva à Cantina Don Chicho, um dos mais costumeiros restaurantes de cá, bem tangueiro nas paredes, bem italiano em alturas de emigração, com a sua “Mama”, que é sim a senhora muito grande e muito redonda, sempre presente nas grandes molduras fotográficas, o rincão onde se amassam e esticam e enrolam as pastas frescas, o homem de testa suada e camisa branca suja de molho de tomate, tão genuíno em tudo isto, que não é de estranhar que tenha sido pano de fundo de uma ou duas cenas do “Secreto de sus ojos”.

O Domingo é de San Telmo, como vai ser também quinta, e volta a ser segunda, e depois numa outra passada rápida na volta da Boca, e mais um saltinho na ida à Plaza de Mayo. Bairro de boémia e da velha burguesia, dos vícios escarlate e da libertinagem aveludada, ouve-se tango nas ruas mesmo quando o contrabaixo não retumba, o violino não chia, o acordeão não arfa e tão pouco há pianos. Vemo-los com sapatos de verniz ao passo do tango, arranham as pontas dos pés, de mansinho, vermelhos, pretos e brancos, os ténis da modinha, as alpargatas de padrão melancia, os saltos da avó das miúdas giras a fazer eco pela calçada. San Telmo pelo mercado das velharias com ananases pegados à cara, arranjos na cabeça e cachimbos no canto da boca. San Telmo de gatos e rosas vermelhas e cigarros por apagar. Podíamos ver um Gainsbourg a apertar uma Jane em algum sofá vermelho na penumbra de um bar, os rabos do Bertolucci sentados ao balcão e ouvir alguma Penélope histérica, à beira de um ataque de nervos qualquer. O que não esperávamos era que San Telmo também fosse o bairro da Mafalda, que tivesse um banquinho para sentar turistas abraçados à boneca e a sorrir para a foto. Quatro andares acima desenhava Quino tantas destas ironias.

Dentro de uma hora vamos ver o José e a Pilar ao MALBA, a Mariana, a Catarina e o Chico também vão lá estar.